sábado, 5 de agosto de 2017

Carta de um jornalista que ainda acredita no jornalismo

Anselmo Crespo22 DE MAIO DE 201700:00

Não, não lhe vou pedir para comprar mais jornais. Nem para sintonizar a minha rádio ou para continuar a ver televisão em direto. Se prefere ler notícias no feed do Facebook, ou noutra rede social qualquer, faça-o. Se prefere ouvir podcast ou uma playlist que o deixa bem-disposto logo pela manhã quando vai para o trabalho, continue. Eu às vezes faço o mesmo. Continue a ver programas gravados na box e não deixe de se rir com os vídeos malucos que circulam no YouTube. Eu percebo. Às vezes precisamos de "limpar" o cérebro das chatices que temos todos os dias e nada melhor do que dar umas boas gargalhadas com as parvoíces que estão na internet. Quem nunca? Continue a fazer tudo isto, mas, quando procurar informação, notícias, tenha cuidado. Não se deixe enganar.

O jornalismo vive uma crise grave. Não é apenas em Portugal, é no mundo inteiro. E os primeiros responsáveis, provavelmente, somos nós, os jornalistas. Durante anos, arrogámo-nos o direito de achar que éramos uma classe privilegiada porque marcávamos a agenda, porque as pessoas confiavam em nós, porque o poder, os vários poderes, tinham medo de nós. Não era jornalista quem queria, era jornalista quem conseguia aceder a uma profissão que chegou a ser considerada, imagine-se, o quarto poder. E, sim, é verdade, demorámos demasiado tempo a perceber que o mundo estava a mudar. Irónico, não é? Nós, que damos notícias todos os dias dessa mudança, verdadeiramente nunca a compreendemos. E continuámos no nosso pedestal a achar que o nosso "poder" era eterno.

É absurdo culpar a digitalização. Ela é, em si mesma, uma oportunidade e não uma ameaça, e nós, que demos tantas notícias de empresas que se reinventaram, continuámos a ignorar e a olhar para esta realidade como uma coisa menor. Nós, jornalistas e, diga-se, algumas empresas para as quais trabalhamos, aflitas que estavam a tentar salvar jornais, rádios e televisões, sem a menor disponibilidade para repensar o negócio e, sobretudo, para repensar o jornalismo.

O poder, os vários poderes, perceberam esta realidade rapidamente. Perceberam não só a oportunidade que a digitalização lhes dá para contornarem os jornalistas e chegar a si, sem filtro, mas perceberam sobretudo que o jornalismo está debilitado e aproveitaram-se disso. Aproveitam-se disso todos os dias.

É isto que está a matar o jornalismo, aquele que é, por definição, independente, que faz o contraditório, que não se deixa pressionar, que tem regras deontológicas, que não se vende. Sim, esse jornalismo em que hoje poucos acreditam mas que ainda existe. Podia dar-lhe tantos exemplos de jornalistas que ganham mal, trabalham horas incontáveis mas continuam fiéis ao compromisso que fizeram consigo. E sim, esses também se enganam e também erram. Mas com duas diferenças em relação aos falsos jornalistas: quando se enganam e erram, não o fazem deliberadamente e são os primeiros a condenar-se. E trabalham, todos os dias, para o informar melhor.

Há jornalismo, há desinformação e há abutres para quem vale tudo para sobreviver. E você, caro leitor, ouvinte e telespectador, é o único que pode ser o fiel da balança. Mas há uma coisa de que tem de ter noção: sempre que a sua curiosidade mórbida o fizer "comprar" falsidades, mentiras, intrujices, sempre que o seu voyeurismo o levar a abrir vídeos que violam as mais elementares regras da profissão e o direito à dignidade de qualquer vítima, está a contribuir para a morte do jornalismo. E se, um dia, o jornalismo morrer, é também a sua liberdade que morre.

Acredite no que quiser. Esse é um dos princípios basilares do jornalismo. Nós damos notícias. O nosso leitor, ouvinte ou telespectador tira as próprias ilações. Mas cuidado com aqueles que lhe vendem lixo embrulhado como se fosse uma notícia.

Fonte: DN

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