quarta-feira, 23 de agosto de 2017

FLUXOS CONTEMPORÂNEOS DE DESESTABILIZAÇÃO PARA DENTRO DE ÁFRICA


Martinho Júnior | Luanda 

A ESPIRAL DE CAOS, TERRORISMO E DESAGREGAÇÃO VAI ALASTRAR PARA SUL DO SAHEL, EM DIRECÇÃO À ÁFRICA AUSTRAL
1- Quando em Berlim as potências coloniais elaboraram a obra de engenharia e arquitectura das colónias com que iriam poder explorar até à medula e de “mãos livres” (de mãos isentas de qualquer empecilho que tivesse a ver com direitos humanos), o desenho prevalece até aos nossos dias, transportando do passado autênticas armadilhas que foram semeadas em finais do século XIX.

São os povos africanos, as jovens nações e os respectivos estados, que apesar da sua vulnerabilidade, apesar de estarem na cauda dos Índices de Desenvolvimento Humano, conforme ilustram os relatórios anuais da ONU, continuam a ter que lidar com essas armadilhas que vêm de longe no prolongamento das trevas, o que dificulta a libertação do continente-berço, nas suas legítimas aspirações de luta contra o subdesenvolvimento e por um desenvolvimento sustentável nas trilhas das gerações presentes e futuras.

As potências coloniais de primeira grandeza de então, fizeram prevalecer na partilha de África, os interesses anglo-saxónicos tendo o Império Britânico na coluna-vertebral (do “Cabo ao Cairo”), envolvendo ainda as colaterais da Alemanha (Sudoeste Africano e Tanzânia), que relegaram as potências menores da Europa que tinham aspirações coloniais para um segundo plano que determinou a sua vassalagem “no terreno”, conforme os casos da França (que ocupou a região de água mais rarefeita), o caso da Itália (com as “batatas quentes” da Líbia, da Abissínia e da Somália), de Portugal (que sofreu o ultimato da “velha aliada” em relação à pretensão expressa no Mapa Cor-de-Rosa) e do Rei Leopoldo II da Bélgica que, embora tenha ficado com o pulmão tropical do continente, viu sua saída para o Atlântico estrangulada na foz do Congo).

2- O Congo, cujo território se situa no coração físico-geográfico-ambiental de África (o centro geográfico do enorme triângulo que tem no Cabo o seu vértice a sul), partindo da posição dum colonialismo vassalo, detinha (e detém) fronteiras com 11 outros territórios que foram geridos pelas outras potências e, à vassalagem artificiosa da potência colonial que o administrou, juntaram-se todos os candentes problemas dum gigante com pés de barro.

Por exemplo: o Congo é a matriz principal de água interior de África, não só por que integra a poderosa e decisiva bacia do rio que lhe dá o nome, mas também por que quer os Grandes Lagos, quer a bacia de outros fluxos aquáticos vitais como o Zambeze, como o Nilo, estão no seu curso inicial nas proximidades do seu território;

Por exemplo: sendo um dos maiores países em área do continente, é um dos que menos infraestruturas como estradas, pontes e ferrovias possui o que obriga ao isolamento de muitas comunidades;

Por exemplo: sendo um dos países com a maior linha e a mais diversificada fronteira terrestre, é o que mais dificuldades nutre no controlo das regiões fronteiriças, tendo em conta as vulnerabilidades de ocupação humana e a proliferação de comunidades com traços culturais distintos, algumas das quais estendendo-se para lá do território (para dentro de territórios vizinhos), outras ainda em dase de migração a partir de áreas desérticas (Sahel), ou de habitat saturado em suas áreas rurais (caso do Uganda, do Ruanda e do Burundi).

Assim como populações migrantes procuram atingir a norte o Mediterrâneo para se instalarem na Europa (sendo atraídos quantas vezes às antigas “metrópoles” coloniais), algo que se acelerou depois do colapso provocado pela NATO à Líbia, também a atracção maior da migração africana proveniente do Sahel mas em direcção a sul, têm no Congo e na Zâmbia, a primeira plataforma do seu destino, pois aí possuem espaços vitais disponíveis e riquezas naturais a transbordar do chão.

O ataque da NATO que acabou com o assassinato de Kadhafi, há 6 anos, foi o momento criado para a intensificação do caos, do terrorismo e da desagregação em África utilizando vários braços nu sistema que tem cortado o continente num paralelo ligando a costa alântica, à costa do Índico: o AQMI (Al Qaeda do Sahel), o Boko Haram (afectando o Chade, o Níger, a Nigéria e os Camarões), as milícias Seleka (República Centro Africana, RCA) e o Al Shabab (Somália).

Na direcção do Congo (da bacia Níger à bacia do Congo) os terroristas estão a utilizar o trajecto ocidental da pista Síria-Líbia-Bissau-Mali-RCA-RDC, tendo redes de apoio no terreno;

Na direcção da Zâmbia (da bacia do Alto Nilo à bacia do Zambeze) o trajecto é a leste ligando sucessivamente Somália-Djibouti-Quénia-Zâmbia-Moçambique (tirando partido do facto de ser uma região de implantação islâmica de há séculos), uma parte deste fluxo fica em Moçambique.

O fecho desse sistema de alastramento, na sequência dos acontecimentos no Médio Oriente, pode vir a ser a África do Sul.

Por todas as razões acumuladas, sendo um “escândalo” na riqueza de água interior, como sob o ponto de vista geológico e mineral, o Congo é não só o território que pela vitalidade atrai as migrações humanas contemporâneas em busca de espaço vital e de riqueza, o que faz prevalecer a tendência de desestabilização, que a partir do estágio das tensões e conflitos locais, pode afectar todos os seus vizinhos quando se desemboca nos teatros viscosos de guerra sem fronteiras em função de doutrinas radicalizadas.

Constatou-se precisamente isso particularmente na “guerra dos diamantes de sangue” de Savimbi entre 1992 e 2002 e em Angola teve-se logo os primeiros sintomas com o desembarque de armamento e mercenários provenientes de países como a Ucrânia, a Bulgária, a Roménia, ou da região dos Balcãs, em direcção ao Congo (e depois a Angola).

Algum armamento transportado por via aérea fazia rota pelo Aeroporto Amílcar Cabral na Ilha do Sal, em Cabo Verde, conforme notícias coligidas em princípios de 1998, verificadas à data através de expedientes de inteligência que se tiveram de organizar e levar a cabo…

Nos dias de hoje, o armamento tem passado de mão-em-mão, por terra e quantas vezes pelo miolo do continente, à medida da progressão dos grupos que semeiam o caos, o terrorismo e a desagregação em migração para o sul.

As bacias hidrográficas angolanas afluentes do Congo, foram por isso sintomaticamente sensíveis na manobra de Savimbi, particularmente o vale do Cuango, cuja ligação à bacia do Cuanza é, sob o ponto de vista geoestratégico, importante para qualquer guerrilha dentro de Angola (por que ao procurar dominar a Região Central das Grande Nascentes ganha a possibilidade de expandir as linhas vitais para a sua disseminação).

3- Os riscos subsistem e, quaisquer processos de desestabilização no Congo continuam a conter algum grau de ameaça para Angola, algo que preocupou particularmente entre 1998 e 2000, em relação ao Cuango, ao Cassai e ao Cuanza, isto é, num triângulo cuja base a norte vai do Soio (oeste) ao Luau (leste) e vértice a sul na Região Central das Grandes Nascentes, ainda que ao retardador aproveitasse os restos dos dispositivos criados no âmbito da Guerra de Fronteiras que vigorou de 1968 a 1991, com a presença dominante do “apartheid” na Namíbia ocupada, nessa altura em fase de desarticulação.

Em 2013 publiquei em Março a série “Ainda o Vale do Cuango”, em que tive oportunidade de fazer um balanço dum cômputo de problemas que se levantavam já nessa altura, imediatamente após as eleições de 2012, nesse triângulo norte, afectando o vale aluvial do Cuango e da bacia inicial do Cuanza que lhe é contígua a sul, dando sequência ao que havia publicado em 2011, (imediatamente após o ataque da NATO à Líbia).

O que é certo, é que algumas sensibilidades sócio-políticas angolanas evitaram sempre abordar esse tipo de riscos, entre elas, posso citar, Chivukuvuku, Samakuva e mercenários do National Endowment for Democracy, como Rafael Marques de Morais, indiciando contudo outro uso, ”no terreno”, sobretudo em aproveitamentos aparentemente locais (caso do Movimento do Protectorado Lunda Tchokwe), à imagem e semelhança de procedimentos análogos em relação a Cabinda.

Dizia eu logo no início dessa série de 5 publicações:

“Quando elaborei a 4 de Janeiro de 2011 o artigo sobre o Vale do Cuango sabia que havia de voltar, mais ano menos ano, ao tema.

Se há de facto em Angola região onde a deliquescência sócio-política-administrativa tem sido crónica é precisamente naquela região imediatamente a sul da fronteira comum da RDC com Angola, em especial no triângulo que tem a norte o município de Luremo e a sul a linha definida entre Xá Muteba, a sudoeste e Capenda Camulemba, a sudeste.

Esse é de facto um autêntico triângulo das Bermudas em termos de insuficiências político-administrativo e onde maior expressão têm ganho rebeldes, traficantes e todo o tipo de ilegais que afluem às minas de Salomão.

Os fluxos migratórios de ilegais provenientes de países africanos islâmicos aumentaram sintomaticamente em direcção a Angola desde 2011, precisamente o ano em que o regime de Kadafi foi varrido pelos ocidentais e pelos seus aliados das Primaveras Árabes e uma atmosfera neocolonial se desabou sobre África!”…

4- A desarticulação da Al Qaeda e do Estado Islâmico no Médio Oriente está a levar que os terroristas “salvados” dessa hecatombe de caos e de desagregação, estejam em parte a ser encaminhados para o Congo e a Zâmbia, de acordo com as últimas notícias que nos chegam, de proveniência de fontes internacionais não públicas, mas com algum grau de fidedignidade.

A passagem desses “operacionais” para qualquer dos países vizinhos do Congo e da Zâmbia não será muito difícil, se atendermos às vulnerabilidades desses vizinhos e esse problema é também um problema para Angola, se levarmos em consideração:

Que ainda há redes de traficantes de diamantes que actuam em regime clandestino, ou semi-clendestino, em relação pelo menos aos diamantes explorados nos fluxos aluviais do Cuango, do Cassai e do Cuanza;

Que pelo facto dos processos capitalistas neoliberais serem propícios a impactos transversais nos ambientes sócio-políticos, esses processos socorrem e alimentam a corrupção e as vulnerabilidades nos sistemas de contra medidas do estado angolano.

Que a evolução dos impactos migratórios permite a manobra aos “salvados” do caos, do terrorismo e da desagregação provocados ao Médio Oriente e Norte de África, uma vez que possuem ainda financiamentos clandestinos em países como a Arábia Saudita, o Qatar e outros “adjacentes”.

Assim Angola deverá continuar a recolher toda a informação possível sobre este tipo de enredos, adaptando ao mesmo tempo todo o tipo de medidas profilácticas e de ordem preventiva!

Como se está em época eleitoral, há contudo uma questão a levantar: por que razão Samakuva, ou Chivukuvuku, continuam a não levantar este tipo de questões, para salvaguarda do povo angolano, da independência, da soberania, do estado angolano e na defesa da paz e da democracia em Angola?

Alguns links de Martinho Júnior:

Fotos:
- Estado Livre do Congo, propriedade privada do Rei Leopoldo II (que foi condecorado pelo governo português com a Ordem de Torre e Espada, recorde-se); o povo congolês sofreu um genocídio silencioso, perecendo dez milhões de seres humanos, genocídio de que restam imagens, memórias e um livro a não perder: “O fantasma do Rei Leopoldo” –https://pt.wikipedia.org/wiki/King_Leopold%27s_Ghost
- Congo, “caos endémico”, armadilha e âncora de caos para África, resultante da Conferência de Berlim, assistiu com Mobutu e Savimbi, à “somalização” do continente, com a “primeira guerra mundial africana” entre 1992 e 2002 –http://paginaglobal.blogspot.com/2014/04/ruanda-cronologia-historica-de-janeiro.html;
- AQMI, faz crescer a desestabilização por todo o Sahel; “sangue e urânio” (foto de Mokhtar Belmokhtar, chefe do AQMI e traficante do Sahara e Sahel, aumentou a actividade após o ataque da NATO à Líbia – https://www.rebelion.org/noticia.php?id=222150

RETROSPECTIVA DE ALGUMAS PESQUISAS DE INTELIGÊNCIA SOBRE TRANSPORTE DE ARMAMENTO PARA O CONGO E ANGOLA, EM 1998

Informação 01: Armamento com destino à RDC – 17 JAN 98.                                                                                                                                                                       1) Dia 15 JAN 98, aterraram na Ilha do SAL, CABO VERDE, dois aviões de longo curso IL – 86 com armamento aparentemente com destino à RDC:                                                                                                                                                    
- Um dos aviões transportava 3 MIG 21, ou 23 (as asas iam à vista, o corpo dos caças, dentro de caixas), com destino a KISANGANI.
                                                                                                     
- O outro transportava 12 caixas com mísseis anti aéreos, ao que parece SAM – 7; cada míssil media entre 1,20 / 1,50 m, segundo as pessoas que tiveram acesso ao interior do IL – 86; o destino era LUBUMBASHI.                                                          

2) Na madrugada de 16 JAN 98 era esperado um outro avião, desconhecendo as fontes, em qualquer dos casos, a sua respectiva origem.

3) Uma das explicações da utilização da rota do SAL, além da segurança e as possibilidades de abastecimento, é a rotação das tripulações; neste caso concreto, segundo as nossas fontes, os aviões são russos.                                                                                                                                   
Informação 02: Escala no Aeroporto do SAL de aviões com armamento e, aparentemente com destino à REP. DEM. DO CONGO – 01 MAR 98.                                                                                                                                                                                                                                                      
1) Fontes bem colocadas no exterior revelam que escalaram CABO VERDE aviões IL – 86, com armamento para a REP. DEM. DO CONGO, no dia 18 FEV 98.                            

2) Segundo ainda essas fontes, levavam como de outras vezes MIG 21 ou 23 (no total de três), desmontados, desconhecendo-se o destino no país vizinho, assim como outros armamentos a bordo.

3) Tendo em atenção o facto dos “maoistas” da UNITA contarem ainda com apoios importantes na região e dos governos de alguns países vizinhos de ANGOLA lhes facilitarem subrepticiamente as ligações e a logística, achamos oportuno a tomada de medidas operativas e diplomáticas.

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