terça-feira, 8 de agosto de 2017

Filomena Marona Beja: “Há uma descompressão política e social no país”

A escritora Filomena Marona Beja afirma, em entrevista ao esquerda.net, que a atual solução governativa “dá esperança aos portugueses” e que é preciso combater a ideia que os partidos são todos iguais. Por Pedro Ferreira

Filomena Marona Beja - Foto de André Beja
No seu último livro a que deu o título Avenida do Príncipe Perfeito(Edições Parsifal) percorre os últimas décadas da História de Portugal e termina em 2008, ano em que rebentou a crise financeira mundial. Na sua opinião este colapso poderia ter sido evitado?
A crise era previsível até porque não era muito difícil ter a noção que a situação tal como estava não podia acabar bem.
E é por isso que o último capítulo deste romance nos fala de sonhos desfeitos, falências, desemprego, fome e miséria?
Em Portugal a situação foi sendo escondida, o país já tinha sofrido a intervenção do FMI por duas vezes [1977 e 1983] após o 25 de Abril e depois disso deu-se a adesão à então CEE, a situação melhorou um pouco e as pessoas iludiram-se julgando que tudo ia correr melhor. Afinal, vinha aí o dinheiro da Europa.
Filomena Marona Beja -Foto de André Beja
Filomena Marona Beja ganhou o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE)/ Direção Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB) com o livro “A Cova do Lagarto” e o Grande Prémio de Literatura DST com o romance Betânia e a Sopa, em 2006
Mas foi o poder político que criou deliberadamente essa ilusão, ou estava ele próprio deslumbrado com a integração europeia?
Quando Cavaco Silva assumiu o poder, tentou iludir o país e com a teimosia que o caracteriza foi impondo as suas ideias e na minha opinião fez uma má gestão dos fundos provenientes da Europa.
Quais foram os principais erros que impediram um desenvolvimento mais equilibrado do país?
Havia prioridades imediatas como a saúde, a educação e também um investimento sério que tivesse permitido ao país produzir aquilo que consumia. Repare que a maioria dos produtos eram importados porque houve compensações financeiras para empobrecer a nossa agricultura e reduzir a frota de pesca através do abate de embarcações.
Mas isso não foi o resultado das contrapartidas negociadas entre Portugal e os restantes Estados-membros da comunidade?
As negociações não acautelaram os interesses do país tendo-se optado pela política do betão que dá mais votos que o investimento em áreas fundamentais como aquelas que já referi mas que no imediato são pouco visíveis aos olhos dos cidadãos.
Centra a narrativa deste romance num atelier de arquitetura que fervilha de atividade, de projetos, o que nos leva a entrar num universo onde tudo parece possível. Estamos perante um país inebriado por um consumismo sem limites e onde a ética se vai diluindo?
Nos anos 80 e 90, a situação mudou muito e de forma repentina e independentemente dos avanços trazidos pela democracia, houve uma euforia que algumas décadas depois acabaria por nos empurrar para um precipício.
Foi uma oportunidade perdida?
Às vezes penso se os portugueses em geral olham para determinados períodos como oportunidades que levem ao desenvolvimento do país ou, ao invés, em momentos que sirvam apenas para dar nas vistas. Por exemplo, a Expo 98, aquilo até correu bem e no fim...
Mas a Expo 98 foi necessária para a afirmação de Portugal?
Sim, talvez tenha sido.
Mas os Descobrimentos não são propriamente um momento muito feliz porque como afirmam hoje alguns historiadores foram o passo decisivo no caminho da colonização e da escravatura.
Mas o tema da exposição foram os mares e os oceanos e para mim esse momento significa o ir, o arriscar.
Filomena Marona Beja -Foto de André Beja
Filomena Marona Beja -Foto de André Beja
Acha que esse é o grande momento da História de Portugal?
De certa maneira sim, apesar de sempre ter havido uma certa tendência para se olhar para ele como uma gesta heróica sem aprofundar outros aspectos que estão na sua génese. Na minha opinião foi uma grande aventura feita com aquela 'inconsciênciazinha' que carateriza os portugueses que se atiram para a frente, para fazer coisas às vezes de uma forma pouco pensada.
Mas essa suposta glória, essa coragem e determinação foram usadas pela ideologia salazarista para justificar muitas das suas políticas, nomeadamente a existência do império colonial.
Houve esse aproveitamento político mas o que importa realçar são os avanços científicos e neste campo cabe referir o matemático Pedro Nunes (1502-1578) que em meados do século XVI obrigou os pilotos portugueses a usar numeração árabe quando eles ainda contavam pelos dedos. Imagine-se como é que se podiam calcular latitudes e longitudes apenas através de sombras. Tudo isto foi importante para a Matemática só que depois não se soube aproveitar o que não é uma situação virgem no nosso percurso enquanto povo, porque temos desperdiçado muitas oportunidades que têm contribuído para a persistência do nosso atraso
Já falou de algumas ilusões vividas pelos portugueses que acabam sempre por se esboroar ficando apenas o lamento, talvez mesmo a ressaca de algo que não se soube aproveitar. Quando o governo do PSD/CDS ascendeu ao poder em 2011, o primeiro-ministro, Passos Coelho, acusou os portugueses de viverem acima das suas possibilidades responsabilizando-os pelas dificuldades em que o país tinha mergulhado. Enquanto escritora e cidadã como é que analisa esse momento?
A grande responsabilidade das pessoas foi terem dado a vitória nas eleições a uma pessoa com aquelas características quando já tinham preparação para ver no que se estavam a meter. É certo que algumas foram atrás do marketing, da pressão dos bancos e até de alguns órgãos de comunicação social para contrair créditos de montantes que não conseguiram depois suportar. É no entanto preciso dizer que já havia quem vivesse muito mal, abaixo do patamar mínimo de sobrevivência. Essa observação do ex-primeiro-ministro foi um pretexto para impor a suas políticas e são também a prova de que as generalizações são perigosas porque distorcem a realidade.
Em 1998, publica “As Cidadãs”, um livro sobre a afirmação cívica e política das mulheres durante a I República.
Escrevi esse livro talvez influenciada pela figura da minha avó que era uma republicana dos quatro costados tendo-se envolvido no movimento das sufragistas. No entanto e com alguma ironia a primeira vez que teve possibilidades de votar foi já em abril 1975 para a Constituinte. E foi também a última porque entretanto morreu.
Foi uma verdadeira revolucionária. Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, ela vivia com a minha mãe nos Olivais, em Lisboa, e quando soube que estava a acontecer uma revolução disse para uns vizinhos e um primo que se tinham juntado lá em casa porque não podiam circular pela cidade:”Uma revolução e eles todos aqui em casa? Tudo para a rua!”.
Em 2007 escreveu “A Cova do Lagarto”1, que nos remete para a vida e obra de Duarte Pacheco (1900-1943), ministro das Obras Públicas de Salazar. Sente algum fascínio pela figura deste homem que morreu tragicamente num acidente de automóvel?
Ele morreu seis meses antes de eu nascer e posso afirmar que era um homem fascinante que tinha uma visão muito diferente de Salazar, algo que ficou expresso nas obras que nos legou.
Mas foi Duarte Pacheco que convenceu Salazar a regressar à vida política criando as condições para ele voltar ao poder.
Como engenheiro foi extraordinário e apesar de ser um exercício puramente especulativo não sabemos o que teria acontecido se não tivesse morrido tão cedo.
Poderia ter seguido o caminho de Humberto Delgado que acabou por romper de forma inequívoca com o regime?
Penso que sim. Afinal de contas, era Salazar que precisava de Duarte Pacheco e não o contrário.
O Zé da Messa foi sempre uma pessoa consciente do que estava mal na sociedade e acabou por ser vítima de um crime de natureza política num país democrático. É preciso que as pessoas nunca esqueçam isto porque afinal uma sociedade democrática também têm pessoas capazes de matar movidas pelo ódio
Na sua bibliografia há ainda lugar para o romance Bute Daí, Zé! editado em 2010 e que é uma homenagem a José Carvalho (conhecido como Zé da Messa), dirigente do PSR assassinado em 1989 por um grupo de skinheads, em Lisboa. Conheceu-o?
Cruzei-me com ele em comícios e manifestações, conversei como pessoas que privaram com ele e pensei que a história tinha de ser contada.
O Zé da Messa foi sempre uma pessoa consciente do que estava mal na sociedade e acabou por ser vítima de um crime de natureza política num país democrático. É preciso que as pessoas nunca esqueçam isto porque afinal uma sociedade democrática também têm pessoas capazes de matar movidas pelo ódio.
No final do livro escreve : “Nada daquilo ficou gravado. Nem VHS. Uma máquina de filmar, sequer. Das antigas: oito milímetros. Por isso, ao julgar, todos foram brandos. E deixaram as grades entreabertas”. Para si, a Justiça não esteve à altura para apurar todos os factos relacionados com o homicídio?
Tenho a convicção de que as coisas não se passaram da forma como o tribunal concluiu. Houve outros responsáveis que acabaram por ficar impunes.
Atualmente e na sequência das eleições legislativas de 2015 há um ciclo político com um governo do PS que tem o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda, do PCP e do PEV. Como é que olha para esta realidade?
Desde logo, posso dizer que gosto muito do nome “geringonça”, que é da autoria do antigo dirigente do CDS-PP, Paulo Portas.
Há quem não goste...
Eu acho giríssimo, tanto mais que nos remete para algo que é frágil, que requer muita habilidade para se pôr a funcionar. Mas vai funcionando embora para se manter seja preciso de vez em quando colocar um pingo de óleo, apertar um parafuso e treinar a forma de tudo aquilo se encaixar.
Apesar desse retrato sobre os múltiplos cuidados que é preciso ter, a dita “geringonça” dá esperança às pessoas?
Acho que sim. Ainda há dias ouvi um velhote na televisão dizer que, apesar de tudo, a sua vida agora está melhor. E eu pensei que se calhar foi porque os filhos arranjaram emprego, ou quem sabe devido a algum aumento da sua pensão, mesmo que pequeno. Mas ele disse isso e talvez até nem fosse capaz de explicar, mas pelo menos não lhe estão sempre a tirar.
Sente que da parte das pessoas há um certo alívio?
Há uma descompressão política e social no país trazida por esta maioria e eu só espero que nas próximas eleições as pessoas vão votar e não tenham aquelas brancas que às vezes acontecem para não ficarem em casa a dizer que são todos iguais e assim justificar a sua atitude abstencionista.
Acha que esta maioria vai cumprir a legislatura?
Confesso que tenho algum receio do Presidente da República
Porquê?
Não é a pessoa que mostra ser e é perigosamente inteligente. Julgo que está à espera que o PSD arrume a casa após as eleições autárquicas.
À espera um PSD de “cara lavada”, sem Passos Coelho?
Isso é evidente para toda a gente. Este cenário implica que os partidos que apoiam no Parlamento o governo de António Costa (que também é uma pessoa muito inteligente) não percam a cabeça porque quanto a mim não é na aprovação dos Orçamentos do Estado que haverá desentendimentos. Há outros aspetos de natureza mais perversa a que é preciso estar muito atento.

1 “A Cova do Lagarto” recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE)/ Direção Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB). A escritora ganhou ainda o Grande Prémio de Literatura DST com o romance A Sopa, em 2006.
Artigo corrigido na nota em 8 de agosto de 2017 às 12.20h
Fonte: Esquerda.net

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