quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Felícia Cabrita, a jornalista sem medo

Por M.Margarida Pereira-Müller

A.A. Nº 244/1967 

Aproveitámos o lançamento do livro "Os amores de Salazar", no passado dia 7 de Novembro, no Forte St. Antonio do Estoril, para falarmos com Felícia Cabrita, não só autora do livro, mas também jornalista do semanário SOL, tendo trabalhado em vários órgãos de comunicação social, como o jornal Expresso, a revista Grande Reportagem ou a estação de televisão SIC. Tornou-se muito conhecida por ter sido a primeira pessoa a denunciar grandes escândalos nacionais, como o Ballet Rose ou o caso Casa Pia.

Quando se fala em si, surge de imediato o adjectivo "destemida". Acha-se destemida?
Tirei o curso de Línguas e Literaturas Modernas, mas não queria ser um rato de biblioteca. Com uns 17 anos já tinha tido uma experiência de jornalismo. Sentia que tinha de fazer coisas noutra área. O jornalismo de investigação, que eu comecei logo a fazer, é um jornalismo que lida com os meios mais obscuros da nossa sociedade (político, financeiro, etc.) e, por isso, envolve sempre riscos. É portanto uma vida de contínua pressão. E eu já passei por diversas situações muito complicadas.

Pode dar-nos alguns exemplos?
Angola é um bom exemplo. No início dos anos noventa, fomos duas mulheres - a fotógrafa Clara Azevedo e eu - a Angola. Estávamos a fazer a biografia da Sita Valles, uma angolana que veio para Portugal antes do 25 de Abril para cursar Medicina, torna-se militante da UEC (Unidos Estudantes Comunistas), ao lado da Zita Seabra. Depois da revolução, achou que a revolução tinha falhado e voltou para fazer a sua revolução em Angola. Algum tempo após o seu regresso a Angola, dá-se o chamado golpe de Nito Alves contra Agostinho Neto e ela, que estava muito ligada a essa ala, e milhares e milhares de pessoas, incluindo mulheres, jovens e crianças, foram mortos, fuzilados.

O que foi exactamente fazer a Angola?
Eu tentava reconstituir a vida dela, primeiro falando com as pessoas (família, colegas de curso) que a conheceram cá, e depois ir a Angola perceber o que tinha sido aquela matança. Era - e até certo ponto ainda é - um tema completamente tabu.

Que dificuldades sentiram?
Muitas dificuldades, de toda a espécie. Por exemplo, dificuldades no terreno, porque a UNITA estava a chegar. Angola estava muito perigosa - aliás o General Tomé Pinto, na altura em Angola como representante de Portugal na Comissão Conjunta para a Formação das Forças Armadas Angolanas nos termos do Acordo de Bicesse, dizia-nos "Vocês não saem deste hotel. Eu proíbo-vos". É que os nossos colegas jornalistas que na altura estavam em Angola, todos eles tinham segurança e saíam em carros do governo. Mas nós as duas, ainda por cima com um ar muito novinho, alugámos um carro e andávamos pelo nosso próprio pé, à noite, de dia.

E conseguiram o que queriam?
Conseguimos tudo o que queríamos: documentos secretos da Polícia Secreta, incluindo documentos assinados pelo poeta Agostinho Neto a mandar fuzilar aquelas pessoas todas. Mas eu queria sempre mais. Lembro-me que a Clara Azevedo, que é muito corajosa, me chegou a dizer: "Felícia, pára", mas continuámos sempre. Uma puxava a outra. Uma vez fomos fotografar uma vala comum e a Clara disse-me de repente: "Esta luz está uma porcaria. Não consegui fazer fotos boas. Temos que voltar cá amanhã". Ora nós já tínhamos subornado as pessoas para ali entrar. Voltar um segundo dia era arriscadíssimo. Mas voltámos. Já fazíamos à filme. Era uma dentro do carro com o carro pronto a arrancar, pronto a fugir.
Muitas vezes senti que estava no limite.

E sentiu medo?
Nunca senti medo, porque não consigo ter medo. Só no dia seguinte, quando as coisas passaram, eu começo a analisar as situações e penso que aquilo poderia ter sido muito complicado. Não quer dizer que seja inconsciente. Faço as coisas de forma pensável. Se tenho de fazer um trabalho que é complicado, sei como me tenho de mexer. Mas nunca tenho seguranças. Provavelmente tenho uma mãozinha que me protege, um anjo muito forte.

Porque só escolhe temas relacionados som o "lado obscuro" da nossa sociedade?
Eu acho que o mundo é muito mau. E nós temos aqui um papel a fazer. Ou nos fechamos em casa, ficamos com a nossa família, tratamos das nossas coisinhas, para não termos que fazer nada, ou temos de ter um papel actuante na nossa sociedade. E a sociedade portuguesa cada vez está mais corrupta. O papel do jornalista é fazer essa intervenção, porque é uma das formas de actuação.

Não fica cansada de ver o mundo só por essa lente escura?
Eu costumo dizer que só mexo na porcaria. É complicado. Daí precisar de fazer de quando em quando grandes retiros. Estou muito ligada à casa, à família. Não tenho vida social, portanto, todo o tempo que tenho livre é para estar em casa, com a minha filha. E aí faço uma limpeza mental. Preciso do afastamento para voltar a ser pessoa.
Investiga muitos casos ao mesmo tempo ou um de cada vez?
Geralmente, trato um caso de cada vez, pois caso contrário é muito complicado, porque são temas, todos eles, que exigem muito. E tem de se ter tempo. Felizmente, eu tenho tempo para trabalhar. E vou até ao fundo. Quanta mais informação há, mais confortável é a minha posição. Pois se eu oiço as pessoas e tenho muito documentos, posso escrever com muita à vontade sobre o tema. Eu preciso de tudo isto. Eu preciso de saber que esgotei todas as fontes. Quando me falta qualquer coisa, se sinto que ainda há uma pessoa importante para ouvir sobre o tema não fecho um trabalho.

Daí Joaquim Vieira ter dito na apresentação do livro "Os amores de Salazar" que o livro ainda estava fechado, que ainda haveria seguimento. Sente que ainda não esgotou o tema, mesmo depois de ter escrito primeiro sobre "As mulheres de Salazar" e agora sobre "Os amores de Salazar"?
Mas ainda há mais documentos sobre o tema! Falei com pessoas extremamente generosas que me deram documentos importantíssimos e outras que não me quiseram dar o que tinham. Um segredo que se guarda durante tanto tempo tem de ter mais contornos. Infelizmente, muita gente já morreu. Resta-nos ir pelos lados, pelos filhos. Muitos documentos não chegaram à Torre do Tombo.

O que sente quando termina um livro? Dá um grande suspiro?
Eu estou sempre a suspirar. Este livro coincidiu com uma série de trabalhos complicados. Suspiro, mas não ficou a pensar naquilo que pari. Eu só preciso de sentir que fiz um bom trabalho. E depois parto para outra.

Como lhe surgem os temas, dos livros e dos temas jornalísticos?
Surgem. Assim. POR isso, os Ballet Rose. Fui de férias e levei para ler o livro "O processo das virgens". E dei por mim a pensar: como é que é possível isto ter-se passado em Portugal e ninguém fala disto? Esta gente ainda está viva? No final das férias, quando regressei a Lisboa, enfiei-me no Tribunal da Boa Hora, onde estava o processo, a tirar moradas e nomes completos e pus-me a caminho.
Mas a escolha dos temas depende de tema para tema. A investigação sobre as mulheres/os amores de Salazar surgiu duma conversa com o professor Marcello Rebelo de Sousa.

Como vê o jornalismo actualmente em Portugal?
O jornalismo em Portugal está muito mau neste momento em Portugal. Há um grande comprometimento entre a classe jornalística e a classe política, uma grande promiscuidade. O jornalismo nos últimos dois anos afundou-se bastante. Os miúdos, os novos jornalistas, saem das universidades e são tratados como carne para canhão. Fazem estágios que não lhes são pagos - contra a corrente, no jornal onde estou a trabalhar agora, o "Sol", os miúdos todos são pagos - e, passados seis meses, vão para a rua. Assim, não se fazem jornalistas. Os que conseguem ficar nos jornais, são mal pagos e não têm meios para saber como é jornalismo a sério. Acabaram-se os conselhos de redacção, onde todos os temas eram discutidos, e onde o patronato não tinha influência nenhuma na linha editorial do jornal. Hoje tal não se encontra em jornal nenhum. Os mais jornalistas mais velhos estão demasiado desiludidos para ir contra a corrente e os mais novos têm medo de perder o local de trabalho. Veja-se o caso Casa Pia. Vamos esperar que o caso chegue ao fim. Basta fazer uma espécie de colectânea com os artigos que saíram e analisar o que escreveram os jornalistas que se dedicaram ao tema. Quando o estudo estiver feito, vai desmistificar-se muita coisa. Estamos, na realidade, na pior fase do jornalismo em Portugal.

Que projectos tem agora em mãos?
Em Abril, vai sair já o próximo livro, uma biografia de Pinto da Costa.

EM CAIXA - Reprodução da foto da capa
"Os amores de Salazar" - Sinopse
Uma vida ao serviço da nação. Foi assim que António de Oliveira Salazar quis ficar conhecido para a História. Um homem sério, ex-seminarista, casto, antiquado, pouco dado a devaneios amorosos. Tudo a bem da nação.
Mas a paixão bateu bem cedo à porta deste homem. Conhecido por troca-tintas, Salazar tocou no coração de várias mulheres, deixando-as, sem esperança, a suspirar de amor. Felismina de Oliveira, o seu primeiro amor. Júlia Perestrelo, a jovem a quem dava explicações. Maria Laura, o amor pecaminoso. Maria Emília, a bailarina e astróloga que o ajudava a tomar decisões consoante os astros. Maria, a Governanta de Portugal, e as suas sobrinhas, que rapidamente ganham um lugar no seu coração e ficam conhecidas como as pupilas de Salazar. Mercedes Feijó, a amante do Hotel Borges; ou Christine Garnier, a jornalista que o levou, num acto pouco usual, a abrir os cordões à bolsa para enviar garrafas do melhor vinho para França. Apesar dos rumores e mesmo de algumas notícias de jornal, António de Oliveira Salazar numa casou. Preferiu levar uma vida de D. Juan. Um destruidor de corações que nunca conseguiu fazer nenhuma mulher feliz.

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